domingo, 13 de fevereiro de 2000

Sequestro do 174

Escrevo estas linhas minutos após assistir ao noticiário que relatou o falecimento de uma das reféns do seqüestro ao ônibus da linha 174 aqui no Rio de Janeiro. Morreu a professora Geysa. Não sei descrever o sentimento que me incomoda, me angustia e me revolta. Só posso dizer que é intensamente triste. Mil questões me ocorrem, perguntas sem resposta sobre problemas aparentemente sem solução. Aquele que puder, autoridade ou cidadão comum, civil ou militar, rico ou pobre, por favor me explique.

Que polícia é essa? Quem os treina? O quê treinam? Quanto treinam? Sou apenas mais um cidadão como todos os outros, dezenas de milhões de pessoas sendo feitas de bobas pelas autoridades deste país. De nada sabemos, mas novamente imploro, alguém me esclareça.

Como pode um bandido “ladrão de galinhas” – assim o julgo pela indumentária, armamento e aspecto do mesmo – causar tanto transtorno e dificuldade para uma polícia que se diz em constante treinamento? Serei eu o ignorante ou a polícia inepta, quando permite que apenas um homem, fracamente armado – apenas um revólver – domine por completo a situação?

Ouvi na TV que a estratégia seria cansar o bandido até a sua rendição. Será que era isso que a polícia queria quando forneceu água, cigarro e ainda o permitiu repousar sentado ao chão do veículo? Visto pela TV, de longe, o bandido deu inúmeras chances de ser atingido com um tiro limpo, sem riscos para os reféns. Quando colocava a cabeça para fora do veículo e gesticulava de arma em punho, sem apontar para ninguém. Não existem mais os tão famosos e treinados atiradores de elite? Era medo de executar o bandido em frente às câmeras e depois ter que se explicar com entidades idiotas de defesa dos direitos humanos? Ou medo de errar e acertar um refém como fez uma vez a polícia paulista? Terá faltado uma voz de comando liberando este tiro pacificador? Que espécie de negociação foi feita, que permitiu que por mais de quatro horas um único homem com uma única arma, zombasse de todo um batalhão (o 23º) e debochasse de uma corporação incluindo o seu tão famoso BOPE?

Alguém da polícia dirá: “Como ter certeza de que era apenas um homem? Como saber quantas armas ele portava?”. Simples: o primeiro refém libertado poderia dar todas as informações, como o fez para a imprensa, esclarecendo as dúvidas da polícia que então estaria preparada para uma ação limpa.

Ainda tenho mais perguntas. Porque foi permitido ao bandido assistir toda a movimentação da polícia? Porque apenas ele dificultava a visão da polícia, ligando luzes de alerta, limpadores de pára-brisa e até nuvens de pó químico? Um ônibus urbano é uma vitrine, completamente devassada que permitiria um tiro claro e certeiro de qualquer ângulo. Porque o negociador permitiu que um bandido, que a princípio estava se rendendo, saísse armado e com uma refém junto ao seu corpo e sob sua mira? E porque um único policial decidiu agir neste exato momento, dando um tiro lateral, não fatal e que deu chance ao bandido de efetuar vários disparos contra a refém ainda no solo? Porque este maldito policial fez o disparo de forma tão imprudente que terminou por atingir também a refém, que saiu do local numa ambulância e gravemente ferida? Quem autorizou este maldito policial a interferir no trabalho do negociador?

E quanto aos negociadores? Onde eles treinam? Em sala de aula ou em simulações teatrais e bem conduzidas? Fazem estágio em situações reais em outros países, já que o nosso não tem um volume suficiente de ocorrências deste tipo, que permita a este profissional tornar-se experiente?

Porque a polícia não divulgou o nome de todos os incompetentes policiais envolvidos no episódio, fossem eles oficiais graduados ou subalternos? Porque um policial assassino que mata um civil não responde à justiça comum dos mortais?

Que trágico espetáculo de inoperância, ineficiência e irresponsabilidade. A quem podemos recorrer, a quem clamar por segurança? Quais serão as conseqüências do fato? Esta eu mesmo respondo: meia dúzia de cabeças serão cortadas, outras tantas transferidas de batalhão e novas cabeças, iguais as anteriores, assumiram os postos. Então só no restará a próxima absurda tragédia. Todos nós, dezenas de milhões de passivos, tocando nossas vidas, como se o ocorrido não nos atingisse, afinal não foi conosco – pelo menos desta vez.

O seqüestro do ônibus 174 revela graves falhas em todo o sistema. Falho por manter um bandido condenado preso numa delegacia, quando este deveria estar num presídio. Falho quando permite que o bandido fuja mesmo sob a vigilância do Estado. Falho quando os policiais que o perseguem, percam de vista seu alvo e ainda permitem que o mesmo entre num coletivo. Falho quando não sabe conduzir uma situação de extrema tensão como um seqüestro. E absurdamente falho quando reluta demais em agir e quando o faz, realiza uma ação amadora que resulta em dois assassinatos: refém e bandido.

E que tal o abuso de autoridade quando dentro de uma viatura policial realiza um “julgamento” que termina com a condenação e a execução sumária do bandido? Só a certeza da impunidade levaria policias a tal ato.

Que espécie de batalhão é o BOPE, que se diz especializado, e que durante a operação não utilizou rádios comunicadores e ainda manteve o rosto de seus homens completamente exposto para toda a bandidagem que assistia pela TV? Que polícia é essa que sobe morros em operações contra o narcotráfico que mais lembram uma guerrilha urbana, e o fazem sem coletes, capacetes e expondo todos os policiais aos mais variados riscos? Quem é o responsável, por esse show de irregularidades, ignorância e estupidez? Que governo é esse que, num primeiro momento, defende todas as atitudes erradas da corporação?

Por outro lado, esta mesma polícia vem executando diária, teatral e religiosamente nos mesmos locais e horários dezenas de operações policiais conhecidas como BLITZ. Mais uma vez eu imploro por uma explicação. Que bandido é burro o bastante para não saber o exato local e horário dessas operações, quando elas são repetitivas e sempre precedidas de um engarrafamento? Ou será que o objetivo destas operações não é diminuir a criminalidade como o roubo de veículos, o tráfico de armas e drogas? Será apenas uma forma fácil de aumentar a receita através de multas e propinas por causa dos IPVAs atrasados?

Enfim, como sei que não obterei resposta para nenhuma destas questões nos próximos anos, fica aqui este registro lamentável de mais um episódio triste do nosso dia a dia.