terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Modelos x Atores

Desde criança sou fã de novelas. Novelas brasileiras, bem entendido. Noveleiro confesso, sou de uma geração que cresceu assistindo aos teledramas da Rede Globo. Minha mais remota lembrança de uma novela fica entre o realismo fantástico de Saramandaia com seus personagens bizarros e O Bem Amado com sua feroz e, talvez inédita até então, crítica política. Em seguida veio Dancin Days, A Gata Comeu, Roque Santeiro, Vale Tudo, O Dono do Mundo, Laços de Família e Mulheres Apaixonada, entre outras. Mas, depois de 20 anos de adicção, tendo percorrido de Janete Clair e Dias Gomes a Silvio de Abreu e Manoel Carlos eu simplesmente deixei de acompanhar as novelas por motivos profissionais. Foi durante o início de Celebridades. Depois disso nunca mais acompanhei nenhuma, embora continuasse me informando sobre seus temas, audiências e elencos.

Hoje pela manhã, enquanto me arrumava para o trabalho, assisti a uma entrevista de Ana Maria Braga com o citado autor, Silvio de Abreu. Tudo bem, eu confesso: também gosto de Ana Maria Braga. Pelo menos o seu programa “feminino”, ainda que com algumas falhas e exageros característicos, não trata a mulher do século 21 como uma deficiente mental. Mas isso é outro assunto. Naquela curta entrevista, Silvio discorria sobre as mudanças sofridas pela teledramaturgia ao longo das décadas, comparando estilos de textos, de interpretação e dos atores envolvidos. Com muita elegância e objetividade ele conseguiu comparar os períodos sem julgar qual deles foi o melhor, já que todos refletiram o tempo em que existiram. Então saí para trabalhar e fiquei com esse assunto na cabeça.

A teledramaturgia brasileira já ocupa um espaço histórico nas artes deste planeta. Foi e ainda será tema de estudos e teses sócio-culturais pelas faculdades pelo Brasil. O assunto é tão vasto e profundo quanto complexo. Criamos um estilo tão próprio e com um nível tão elevado que se tornou modelo para muitos países que consomem nosso produto com avidez. Através das novelas, mais do que com qualquer outro produto, exportamos nossa cultura e divulgamos nosso estilo de vida. Exatamente como os americanos fazem há quase um século com seu cinema e, mais recentemente, com suas séries. Mas um fato inegável vem aos poucos transparecendo e tirando o sono de muitos profissionais do ramo. Hoje as novelas já não ocupam em nossas vidas o mesmo espaço de há dez anos e isso tem se refletido nos números do ibope. E por quê? Eventualmente aqui ou ali encontramos algum analista apontando um ou outro motivo deste desinteresse. Mas como disse, a questão é complexa e é difícil perceber todos os pontos relevantes. Acredito que, por ser um fenômeno profundamente enraizado em nossa sociedade, as novelas são diretamente afetadas por quaisquer mudanças que naquela ocorram, por mais superficiais que possam parecer. Silvio apontou algumas destas mudanças, como por exemplo, o tipo de ator que se tem hoje em dia.

Até a década de 50, antes do surgimento da televisão, a grande estrela dos lares era o rádio. Nele nasceu a primeira “dramaturgia de massa”. Era a primeira vez na história que uma obra deste tipo ficava disponível e ao alcance de um botão de uma caixinha de madeira na casa de milhares de pessoas. Antes disso a dramaturgia era algo que exigia um expectador ativo, que precisava se arrumar, sair de casa e pagar um ingresso para assistir a uma peça de teatro numa casa com uma lotação específica e que raramente ultrapassava 200 lugares. Com o rádio foi criado o expectador passivo, que se sentava no sofá girava um botão ali estava o teatro instalado em sua sala. Mas a novela de rádio nada mais era do que um teatro feito dentro de um estúdio, geralmente na presença de uma pequena platéia e, portanto interpretado por atores de teatro, auxiliados por competentes e criativos sonoplastas encarregados de criar toda a ambientação que ajudasse o ouvinte a se envolver com a trama.

Então nasceu a televisão e logo alguém teve a idéia de transportar a novela de rádio, um grande sucesso de audiência, para aquele novo meio de comunicação de massa. E onde conseguir os profissionais para esta nova dramaturgia? Claro que eram aqueles mesmos atores todos com formação teatral e experiência d sobra para encarar uma televisão ainda feita ao vivo, inclusive nos comerciais. E não precisa ser um estudioso para perceber que o estilo de interpretação do teatro é completamente diferente da televisão. O teatro é mais livre mais permissível a licenças de todos os tipos. No teatro um jovem pode interpretar um idoso e vice-versa. No teatro a voz é o grande instrumento do ator. A televisão disponibilizou outras ferramentas para o ator. Existem os planos, os closes, as maquiagens e mais recentemente os efeitos especiais, as trilhas sonoras elaboradas e, depois da invenção do videotape, a chance de fazer de novo.

Ao assistir a uma novela da década de 50 ou 60, percebe-se claramente que o estilo de interpretar dos atores remete ao teatro. Até porque os textos eram teatrais, menos dinâmicos do que hoje. Mas era aquilo que a sociedade da época consumia com gosto. Ao longo dos anos as novelas forma refletindo as mudanças desta sociedade e, paralelamente a isso, com o amadurecimento da estrutura televisiva, alguns atores começaram a ser criados diretamente naquele novo meio. Alguns migraram em pouco tempo de volta para o berço original da dramaturgia e mergulharam também no teatro. Mas houve quem se sentisse tão à vontade naquele novo meio, tão profundamente conhecedor daquela mecânica, que simplesmente se bastou na televisão. E sem que isso significasse ser um ator menor ou com menos recursos dramáticos. Estão aí Regina Duarte e Glória Pires para provar isso. E elas conviveram e convivem em perfeita harmonia com os grandes atores do teatro como Fernanda Montenegro ou Lima Duarte, experientes atores de rádio e teatro.

Chegamos aos anos 90 e a estética passou a ser uma preocupação daqueles que produziam televisão. Essa nova ordem se refletiu em todos os programas, dos telejornais às novelas. Claro que havia, como sempre haverá, espaço para o talento verdadeiro, o dom. Mas também passou a haver a necessidade do belo e do harmonioso no vídeo. A televisão é feita em closes, ou no mínimo em plano americano (o busto dos telejornais). E um rosto bonito agrada bastante. A qualidade da imagem já era excelente e os aparelhos de TV ficavam cada vez maiores e junto com eles aumentava o senso estético da sociedade. A geração saúde havia amadurecido nos anos 80 e nos anos 90 as top models começavam a ditar o que era in e o que era out. Nesta época Valéria Monteiro e Carolina Ferraz assumiram posição de destaque como apresentadoras de telejornais. E nessa época os modelos começaram a migrar para a teledramaturgia. Homens e mulheres famosos por sua beleza e elegância nas passarelas ou em estúdios fotográficos surgiam discretamente nas produções da televisão. Alguns com talento, outros nem tanto, alguns esforçados e dedicados em aprender, outros se apoiando unicamente em seus belos rostos, mas estavam ali, ocupando seus espaços e batalhando por reconhecimento.

No Brasil criou-se um preconceito que não é compartilhado por nenhum outro grande centro produtor de cultura, e que a custo de muita crítica vem mudando. Aqui o artista precisa escolher um ramo das artes para seguir e nele se especializar para ser considerado bom. O ator de comédia não sabe fazer drama e vice-versa. O ator não pode dançar. E, preconceito maior, o ator não pode cantar. Em outros lugares, como Estados Unidos e França existe apenas o conceito de artista. Aquele que faz arte. Ele representa, dança, canta e ainda faz acrobacia. E isso é ótimo, o artista é conceituado como completo. O que seria da Broadway sem os artistas completos. Um dos maiores exemplos de artista não nato talvez seja Frank Sinatra. Começou a cantar por pura vontade, teve apoio da máfia, se esforçou, aprendeu, migrou para o cinema onde interpretou e dançou e se tornou um mito. Sinatra talvez não tenha sido agraciado de berço com o talento de um Cole Porter ou Ray Charles. Tampouco nasceu uma estrela como Judy Garland. Mas batalhou, se esforçou, aprendeu e escreveu seu nome na história a ponto de ninguém questionar seu talento.

Por aqui ainda sobrevive o preconceito, principalmente na TV e mais ainda com os modelos atores. Existe gente pouco talentosa na TV? Óbvio que sim e só assistir a qualquer canal para encontrar os exemplos. Falta de talento não é privilégio de modelos. Só que a televisão tem uma mecanismo natural de seleção de talentos e aqueles que nada tem a oferecer para as artes vão tombando pelo caminho. A novelinha “Malhação” está aí se arrastando para provar isso. Uma peneira com mais de dez anos, que já rendeu muitos talentos para a Rede Globo e que hoje mal se sustenta em seu elenco. Alguém se lembra de quando Reynaldo Gianechinni apareceu na TV? Choveu crítica em cima do modelo, o acusaram de ser protegido por Marília Gabriela, de ter feito teste do sofá por sua suposta homossexualidade e outros tantos absurdos. Hoje ninguém questiona seu talento. Alguém dirá: “Ah, mas ele nunca será um Paulo Autran ou um Tarcísio Meira!”. E eu digo “Que bom!”. Porque o dia que a cultura for feita de clones e não de criativa diversidade, ela simplesmente acabou. Pra não citar o caso mais recente de Grazi Massafera que teve que quebrar três estigmas por ser loura, ex-miss e – pecado mortal – ex-BBB, para ser reconhecida como atriz iniciante e ainda assim é caçada pelos críticos.

Por coincidência ou não, justamente neste período, as novelas entraram em crise, com audiências em queda, ainda que seus números continuassem muito acima dos da concorrência. A Rede Globo estava acostumada com índices acima de 40 para suas novelas e qualquer coisa próxima de 35 acendia a luz amarela e gerava memorandos para um monte de gente. Talvez tenha faltado aos estudiosos analisar o motivo desta mudança nos números em função de uma profunda mudança social que ocorreu a partir dos anos 90. Alguém já imaginou o motivo da novela dita “das 8” ter seu horário deslocado pouco a pouco ao longo da década para se tornar a novela “das 9”? O motivo me parece claro como água. A novela sempre foi um produto feito para a dona-de-casa. Seus temas românticos, seus dramas familiares, seus amores proibidos sempre foram direcionados para aquela mulher que estava em casa e, entre preparar o jantar e esperar o marido chegar, se distraía com a novela. Só que, a partir dos anos 90, este tipo de mulher foi entrando em extinção. A dona-de-casa, por razões econômicas passou a trabalhar, algumas vezes mais que o marido e, não raramente, se tornava a dona da casa. Ela também estava chegando tarde e cansada do trabalho para ainda preparar um jantar, cuidar de filhos e arrumar uma casa. Oito da noite ela ainda estava atarefada e sem tempo para assistir à novela. Jogar a programação para a frente foi uma tentativa de recuperar esta expectadora e por algum tempo isso funcionou. E mais. Como agora esposa e marido estariam juntos em frente à TV, houve também uma alteração nos temas e nos ritmos da trama, de modo que esta fosse interessante para todos.

Por coincidência, outro fenômeno chegou ao Brasil nesta época e este pode ter exercido uma influência muito maior do que se poderia imaginar: a TV por assinatura. Inicialmente a TV à cabo foi um fenômeno de elite como toda novidade tecnológica por aqui. Mas assim como muitas outras, em pouco tempo ela foi se difundindo, ainda que por meios ilegais, e hoje poucas são os bairros, por mais pobres que sejam, que não tem a sua TV à cabo. Essa facilidade de acesso a outros canais e a enorme diversidade deles, acabou por roubar boa parte da audiência dos canais abertos, incluindo a (quase) inabalável Rede Globo.

Só o futuro dirá que danos essas mudanças poderão causar ao nosso maior produto cultural de exportação. Alguns dizem que ela acabará. Outros que ela apenas passará por outras reformulações para se adaptar aos novos tempos. Eu me arrisco a dizer que a novela, assim como o carnaval e o futebol, são imortais em nossa cultura. Ambos passaram e passarão por mudanças, altos e baixos, renascimentos, mas sempre estarão presentes por serem parte de nossa identidade. Qualquer especulação sobre o assunto não passará disso. Uma mera suposição. O cinema nacional foi declarado morto por vários estudiosos, com direito a nota fúnebre e tudo. Mas um dia uma atriz que nem era de primeira grandeza achou que estas previsões estavam erradas, captou recursos e fez Carlota Joaquina. Naquele momento, mesmo sem saber, acreditando apenas em si mesma, Carla Camuratti ressuscitou o cinema nacional e abriu caminho para fazer dele algo que hoje é respeitado internacionalmente. O fato é que, assim como no futebol e no carnaval, o talento brasileiro para a dramaturgia sempre vai existir. Bons autores e atores vão continuar nascendo. Cabe a TV encontrar o melhor meio de aproveitar estes talentos. E ela vai encontrar, como sempre encontrou.