quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Engasgado Estou Eu

É engraçado como eu nunca comentei aqui sobre um assunto que volta e meia debato com os que me cercam. Um assunto que me incomoda e irrita absurdamente. Vamos a ele.

Hoje pela manhã dei de cara com a notícia de que mais uma pessoa, desta vez um bebê, morreu engasgado numa creche. Para uma pessoa com conhecimentos básicos – eu disse básicos - em primeiros socorros, uma pessoa morrer engasgado é algo tão estúpido quanto morrer de topada no dedo mindinho.

E aí vem o gancho que eu queria para descer o sarrafo em muitas coisas erradas. Sabe por que pessoas morrem engasgadas com tanta freqüência no Brasil? Porque aqui, ao contrário de muitos outros países, primeiros socorros não se ensinam na escola. Na América do Norte e na Europa há milhares de casos de crianças que salvaram até adultos, realizando manobras de reanimação cardiopulmonar até a chegada dos paramédicos. Aqui uma criança morre engasgada porque um adulto não conhece meia dúzia de manobras para desobstruir uma via aérea.

E sabe o pior? Na década de 90 eu estudei medicina e, pelo menos até aquele momento, isso também não se ensinava na faculdade. Porque dentro de um hospital você tem equipamentos para realizar os procedimentos. As “manobras” não eram ensinadas. Isso quer dizer que um médico formado provavelmente assistiria a morte de alguém engasgado ao seu lado, sem saber o que fazer.

Essa deformidade vem de longa data. No Brasil o conhecimento médico foi elevado há uma categoria acima das outras carreiras. Médicos são quase uma casta. Eles são guardiões da sabedoria e do poder para salvar vidas. Tentar repartir este conhecimento e esta função é motivo de revolta.

Ao contrário de todo o mundo civilizado, paramédicos não são reconhecidos como profissão por aqui. Para resguardar o conhecimento dos “leigos” foi criada uma nova especialidade que permite ao médico realizar procedimentos pré-hospitalares. O problema é que não se aprende pré-hospitalar na faculdade.

Eu sei o que falo porque estive nas duas pontas desse cabo de guerra. Entrei numa faculdade de medicina e vi o que era ensinado. E depois estive como paramédico dentro de uma ambulância aqui no Rio de Janeiro. E vi o quiprocó que a empresa de resgate causou. Socorristas foram presos por “exercício ilegal da medicina”. Eu mesmo fui fotografado e arquivado no CRM realizando uma entubação de uma vítima de atropelamento – me safei porque ainda estudava medicina. Alguns médicos bombeiros nos hostilizavam. Não éramos do mesmo time. Éramos os invasores. Roubamos o conhecimento e, pior do que tudo, roubamos o mercado de trabalho

Enfim, quem perde com tudo isso é aquele que parece estar acostumado a perder. A população. Confesso que na minha idade fica difícil ter esperança de que coisas como esta sejam alteradas. Enraizaram de tal forma que fica muito difícil. Eu faço o que posso ao meu redor. Perto de mim eu posso jurar e garantir que nenhuma pessoa morrerá engasgada sob nenhuma hipótese. Idem em relação à mãe de meu filho e, muito em breve, em relação ao meu próprio filho.

Quem sabe ensinando a ele, eu plante uma semente para algo novo no futuro.