quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Homem-Tartaruga



Nos anos 90, o irmão do meu cunhado estava envolvido com uma produtora de eventos e volta e meia alistava amigos para trabalhos de freelancers braçais, como roadie e contra regra em shows dos mais variados. Era um trabalho divertido e ainda rendia uma graninha extra pra cerveja. Mas se havia o lado bom, que era conhecer artistas havia os problemas naturais do ofício.

Uma vez tomei um mega esporro do falecido Eduardo Conde, mestre de cerimônias de um evento popular em Campo Grande, porque tinha colocado o pedestal do microfone baixo demais. Eu não me toquei que o cara tinha mais de 1,90m e o microfone estava no peito  dele...
Neste mesmo dia tive a oportunidade de buscar Moraes Moreira e seus músicos numa Kombi caindo aos pedaços em Copacabana e levá-los até Campo Grande, numa inesquecível e divertida viagem com um papo delicioso.

O trabalho mais incrível dessa época foi realizado na UERJ. O projeto era algo do tipo “Música no Almoço”, onde um artista convidado se apresentava no pequeno anfiteatro do Campus no Maracanã, respondendo perguntas da platéia e fazendo um pocket show acústico. No dia em que fui convocado pra ser roadie, o convidado era o Lobão. O que dizer sobre o velho Lobo? O cara chegou na UERJ as 10 da manhã e sua única exigência foi uma garrafa de uísque e um balde de gelo, que ele detonou nas cerca de 3 horas que antecederam a apresentação. Depois vieram as perguntas, as músicas e eu me diverti muito com a porra-louquice do convidado.

Mas o motivo desse texto não foi o show em si, que transcorreu muito bem. O que veio em seguida é que foi inesquecível. Terminado o show, era o momento de desmontar o circo. Desfazer camarim, recolher equipamento, banners e todo o resto. Tudo ia bem, até chegar a hora de guardar os painéis. Eram três, feitos em dois pedaços de madeira maciça do tamanho de portas, unidos por dobradiças e forrados internamente com cortiça para prender cartazes e banners. Esses murais móveis precisavam ser retirados do anfiteatro e levados até o almoxarifado. Entre os dois, apenas um pátio interno. Um caminho de cerca de 50 metros.

Ora, eu estava trabalhando com o tal irmão do cunhado e mais um amigo.  Éramos três, eram três painéis, nada mais natural do que cada um pegar o seu e adiantar o serviço para irmos embora. O “chefe” pegou o dele, dobrou, jogou sobre as costas e saiu andando. Meu outro amigo fez o mesmo. Sobrou um. Era o meu. Fiz como eles: juntei as portas, virei de costas e deixei que elas tombassem sobre mim. Era pesado. Olhei pra frente e vi os outros dois já no meio do pátio. Não dava pra voltar atrás. Abri os braços e apoiei o conjunto pela lateral. Dobrei o corpo e as portas saíram do chão, repousadas sobre minhas costas.

Naquele momento o planeta sofreu uma alteração em seu eixo, seu pólo magnético foi deslocado e a velocidade de rotação diminuiu, fazendo com que a gravidade se tornasse algo mais poderosa. Pelo menos ali na UERJ.

Comecei a caminhar com dificuldade, tal qual um Atlas, carregando o mundo em minhas costas. Saí do anfiteatro com passos ainda firmes e comecei a cruzar o pátio. Um calafrio correu a espinha, a perna tremeu. Pensei em parar, mas sabia que se o fizesse, não voltaria a andar. A inércia me movia. Olhei em volta, pátio cheio de estudantes que ainda comentavam sobre o show. Alcancei o meio do pátio, mãos doendo, pernas tremendo e então a gravidade sofreu nova alteração. Pra mais. Eu arriei no chão. Eu não caí, foi mais como uma implosão, lenta, em estágios. O joelho dobrou e eu fui me deitando com as portas do inferno sobre mim. Quem olhava via apenas um par de portas no chão de onde saía um par de braços e outro de pernas.

Mico do século, mas eu estava bem, aliviado. Respirava feliz, mesmo naquela situação. Do meu ângulo via apenas um pedaço do pátio e as pessoas rindo de se dobrar. Não consegui virar a cabeça pra olhar de onde vinha a voz:

- Alguém ajuda o menino aqui, PELAMORDEDEUS!!!

Era a tia da limpeza, preocupada com o fim do meu calvário. Foi o tempo de meus amigos retornarem e erguerem a trapizonga, liberando meu singelo chassi de frango. Não preciso dizer que, durante muitos meses, a história do Homem-Tartaruga foi divulgada por todos os cursos da UERJ. E esses dois amigos até hoje não perdoam. E eu nunca mais me arrisquei a carregar algo que não tivesse absoluta certeza de que agüentava.

Como dizia Sassá Mutema: “Quem não pode com o pote, não segura na rodilha...”